INSÓNIA – Improviso para noites de inquietude
A noite já vai adiantada. O sono não chega.
Aqui, sentado neste balcão de bar, ao som do piano de jazz e das pedras de gelo que tilintam no copo, envolto em fumo e conversas em surdina, deixem-me contar a história da criação de um formato de improviso.
Tudo começou com uma vontade pragmática: queríamos criar um espectáculo logisticamente simples. Algo intimista e ágil. Mas não foi isso o que aconteceu.
Comecemos pelas apresentações: somos os Cardume – Colectivo de Impro, um grupo de 9 improvisadores sediado em Lisboa. Desde 2015 que criamos e apresentamos regularmente espectáculos de improviso, predominantemente de formato longo e médio. O espectáculo de que vos falo hoje acabou baptizado como “Insónia”.
O processo de criação deste espectáculo foi uma experiência exemplar de como um espectáculo de teatro de improviso pode germinar das raízes que sustentam e alimentam a improvisação.

Uma pessoa e a sua insónia entram num bar.
Estávamos em Novembro de 2023 e tínhamos acabado de repor o nosso espectáculo de Halloween, “After Life Party”, que envolve um cenário com mobiliário pesado, vários adereços temáticos, figurinos cuidados e caracterização. O seu formato é estruturado e conjuga alguns jogos de improviso com dinâmicas mais livres. É um espectáculo com complexidade logística e formal que gostamos muito de fazer, mas que nos empurrou para um caminho diferente.
Conseguir levar público a uma sala de teatro e fazer erguer um espectáculo sem uma produtora que o apoie é uma tarefa árdua. É um trabalho que fazemos no Cardume por verdadeiro amor ao improviso. Mas a produção de um espectáculo pode muitas vezes contaminar o prazer e a disponibilidade mental para se subir ao palco e improvisar livremente.
Foi neste contexto que começámos a ensaiar a criação de um novo espectáculo que nos libertasse das pressões habituais que circundam o acto puro de improvisar em grupo. Da vontade surgiu a oportunidade.
Uma das improvisadoras dos Cardume vive num prédio que ficou com um apartamento livre. Era uma casa antiga, parada no tempo, que ficou desocupada e disponível. Era uma habitação labiríntica, com divisões pequenas, corredores, escadas subterrâneas inesperadas e uma aura de inquietude provisória.
Foi dela que surgiu a ideia de criar um espectáculo imersivo e aproveitar este “palco” inesperado que agora se mostrava disponível. Não seria necessário montar um cenário, porque a casa em si já estava mobilada. A pequena dimensão das divisões e a impossibilidade física de ter muito público (no máximo caberiam 15 pessoas a assistir em cada espaço) tornavam pouco exigente ter casa cheia.
Estávamos decididos: iríamos desenvolver o nosso primeiro espectáculo de improviso imersivo. Dentro das memórias de uma casa que não tínhamos habitado, começámos a ensaiar e a descobrir o que poderia ser este espectáculo.
O barman já a conhece. Serve-lhe um copo. Nós ainda não.
Uma pergunta central servia de força motriz: O que é esta casa e porque estamos aqui?
A cada ensaio, testávamos as propostas que cada elemento dos Cardume foi propondo. A casa seria: um último reduto num mundo pós-apocalipse; onde veríamos as histórias das famílias que a habitaram ao longo dos tempos; talvez apenas um conjunto de divisões diferentes, cada assoalhada com o seu tema ou ambiente particular.

Foi um período experimental, com muito debate, análise e onde a voz de cada um se fez ouvir. Arriscámos e testámos; errámos muito e acertámos muito também. De ensaio em ensaio fomos descobrindo o que nos dava prazer, o que funcionava no grupo e o que queríamos apresentar ao público. E assim, juntos encontrámos o espectáculo. A casa seria a mente de uma pessoa e nós iríamos criar os seus pensamentos e processos mentais. Juntamente com o público, iríamos descobrir o que inquieta esta personagem, o que lhe tira o sono à noite. Iríamos ser a sua Insónia.
Assim que encontrámos o conceito de “entrar na cabeça” de uma personagem e criar livremente os seus pensamentos, medos, ansiedades, expectativas e memórias, a motivação e o entusiasmo subiram. A descoberta colectiva parecia finalmente ter mostrado o caminho e os ensaios em que descobrimos o Insónia começaram a fluir.
Afinal, o que a mantém acordada a esta hora?
Sem intenção planeada, começou a surgir a dramaturgia que iria colorir esta viagem ao interior da psique humana e ao labiríntico ordenamento/caos dos pensamentos. A inspiração começou por vir do filme de terror psicológico “The Shining” (1980), de Stanley Kubrick, na cena em que a personagem principal, Jack Torrance, se senta no bar do hotel para desabafar com um barman e tomar uma bebida, sendo transportado para o início dos anos 20.
Deixámo-nos influenciar pelo trabalho do David Lynch, na sua utilização de elementos surrealistas e simbólicos em cena. Finalmente, incorporámos elementos do filme de animação “Inside Out” (2015), da Pixar, onde as emoções são personificadas e assumem a condução da história a partir do interior da mente de uma criança.

Esta amálgama de referências libertou-nos das amarras da linearidade da história num contexto tão surreal como é a manifestação cénica dos processos cognitivos de uma pessoa. Emoções, sensações, ideias e estruturas mentais ganharam vida nos corpos dos improvisadores e cada história passou a ser mais fácil de encontrar e de colorir em palco.
Assim, a personagem daria por si num bar, durante a noite. Um lugar estranho, entre o real e o onírico. Nesse bar, estariam também outras pessoas que sofrem de insónia. O barman seria o seu guia e iria servir-lhe as causas da inquietação nocturna.
Já tínhamos a forma e a orientação sobre o conteúdo que precisávamos para improvisar. Estava criado o espectáculo. Mas foi então que, como em todo o bom improviso, alguém fez uma proposta…
Se ao menos soubéssemos o que se passa na sua cabeça…
Em pleno processo de desenvolvimento do Insónia, recebemos o convite por parte do grupo de improviso Instantâneos, para participar no ESPONTÂNEO – Festival Internacional de Teatro de Improviso. Esta era a oportunidade perfeita para apresentarmos algo inédito a um público novo.
Porém, o trabalho que tínhamos desenvolvido estava intimamente relacionado com a casa onde estávamos a ensaiar, um“palco” que nos imergia. Agora tínhamos de adaptar o espectáculo, concebido para o interior de uma casa abandonada, para um palco de teatro. Foi desta necessidade logística e fortuita que o “Insónia” se concretizou verdadeiramente.
A ideia do “Bar Insónia”, um speakeasy requintado e surreal, ganhou corpo e forma física. Para o cenário criámos um balcão dourado, escolhemos poltronas de veludo e mesas de madeira desiguais. Uma cantora e um pianista de jazz dão ambiente e os clientes do bar podem degustar as melhores bebidas previamente destiladas pelo público com medos, ansiedades, mudanças de vida, e outras razões para se ficar desperto.
À vez, cada personagem senta-se ao bar e consome aquilo que lhe tira o sono: uma mudança de emprego, um problema familiar, uma viagem. O que vemos surgir, em cenas improvisadas, é a manifestação dos seus pensamentos insones. Por vezes, as personagens encontram o sossego que tanto procuram e tomam as decisões que precisam de tomar; outras, permanecem num desassossego que se prolonga noite fora.
Levámos o “Insónia” ao palco do ESPONTÂNEO no dia 18 de Fevereiro de 2024, sem ensaio geral, com o elenco completo de Cardume. Foi um sucesso absoluto. O público adorou, recebemos feedback muito positivo e sentimo-nos felizes pelo resultado final que tínhamos alcançado juntos. Estávamos artisticamente realizados.

Com a prova de que o espectáculo funcionava, já sem medo nem angústia, convertemos definitivamente o “Insónia” num espectáculo de palco, para um grande público e de logística exigente. Subverteramos completamente a premissaque nos tinha trazido até ali. Matámos a ideia, despojámo-nos do ego e adaptámo-nos em prol de um bem maior. Tudo valores e princípios que regem a nossa forma de improvisar.
E o que aconteceu à casa abandonada, devem estar a perguntar-se? Não desperdiçámos esta oportunidade e criámos um espectáculo imersivo chamado “Amnésia”. Mas isso é tema para outra garrafa, porque a noite já vai longa e o Bar Insónia vai fechar as portas.
Boa noite e bom sono, se chegar.
CARDÁPIO INSÓNIA
Co-criação e Interpretação: Cardume – Colectivo de Impro. André Carvalho, André Pedro, Elsa Duarte, Gonçalo Sítima, João Filipe Ribeiro, Pedro Miguel Silva, Sara Afonso, Susana Branco e Vera Aroeira.
Direcção artística: Gonçalo Sítima
Músicos convidados: António Leão, João Eiró, Pedro Ramos
Este artigo foi originalmente escrito e publicado na revista Status nº156 (Junho de 2024 – www.statusrevista.com), uma publicação internacional especializada em teatro de improviso.