BLOGRessonâncias

Considerações e deambulações sobre improviso

Deixar espaço para o erro

Junho 16, 2024

O que a filosofia e metodologia do produtor Steve Albini têm em comum com o teatro de improviso.

 

Steve Albini foi um dos mais relevantes produtores e músicos do rock alternativo norte-americano. A sua atitude punk e a defesa absoluta dos valores da integridade artística e da independência marcaram toda a sua carreira.

Não admira que o trabalho de Steve Albini tenha paralelismos com a improvisação teatral, afinal, o teatro de improviso é a versão punk rock do teatro “tradicional”.

Um dos princípios que Albini defendia era a imperfeição, ou por outras palavras, a humanização da música. Albini não produzia ou gravava álbuns que soassem demasiado processados e trabalhados, como se tivessem sido gerados por uma máquina sem alma.

O seu objectivo era captar a esse^ncia dos artistas com quem trabalhava e, para ele, isso implicava captar a crueza das performances e dar espaço para que os erros e os acidentes acontecessem. “Errar é humano” e Albini era um verdadeiro humanista. É nesta postura que o trabalho do Steve Albini se cruza na perfeição com a improvisação. Mas antes de falarmos sobre isso, um pouco de contexto adicional.

I like to leave room for accidents and chaos. If every element of the music and dynamics of a band is controlled, then the record may not be incompetent, but it certainly won’t be exceptional.
Steve Albini

Em 1992, os Nirvana eram a maior banda de rock do planeta. O sucesso alcançado com o álbum Nevermind tinha-os catapultado para a estratosfera e a música “Smells Like Teen Spirit” tornara-se o hino de uma geração. Comercialmente, os Nirvana eram o Santo Graal para qualquer produtor.

Quando chegou o momento de gravar o sucessor de Nevermind, seria expectável que a banda quisesse repetir a fórmula que funcionou tão bem no passado. Seguramente que a sua editora assim o desejava. Mas o trio de Seattle tinha outros objectivos em mente. Nevermind, produzido por Butch Vig, tinha um som polido, compacto e perfeito para um consumo de massas. Em parte, essa qualidade sónica contribuiu para o sucesso do álbum. Contudo, Kurt Cobain pretendia que o sucessor de Nevermind fosse diferente, com uma sonoridade mais crua, captado de forma mais espontânea, com a banda a tocar junta em estúdio com a mesma energia avassaladora dos concertos… uma gravação intensa e imperfeita. Foi deste desejo que surgiu a vontade de trabalhar com Steve Albini.

A abordagem feita pelos Nirvana motivou Steve Albini a escrever uma carta (sim, nos anos 90 ainda se enviavam cartas) onde explanou os princípios que regiam o seu trabalho e a sua metodologia. Em vez de uma carta de agradecimento por poder trabalhar com a maior banda do seu tempo, Albini decidiu tornar bem clara a sua defesa da integridade artística e o seu método para a salvaguardar.

A carta, de apenas quatro páginas, é uma leitura fascinante e um tratado sobre a importância de ter uma visão artística clara, integridade profissional, independência e insubmissão à indústria musical comercial. Apesar dos Nirvana serem uma das bandas que mais discos vendeu entre 1991 e 1992 (mais de 4 milhões no final de 1992), Albini prescindiu dos royalties do álbum que iria gravar, algo que o tornaria financeiramente confortável para o resto da sua vida, porque acreditava que as bandas é que deveriam receber dinheiro pela música que lançavam. O seu trabalho seria pago adequadamente e terminaria no momento em que entregava o produto final. Não basta parecer íntegro, é preciso sê-lo. Steve Albini era-o.

Capitalismo à parte, um parágrafo da carta em particular motivou-me a escrever este texto:

Quando descreve o seu método de gravação de um disco, Albini diz: “Gosto de deixar espaço para acidentes e caos”. “Acidente” e “caos”, dois conceitos assustadores. Mas Albini não pensa assim. Para o produtor, deixar que uma banda tenha espaço para errar durante o processo de gravação de um disco é dar-lhe liberdade e confiança para se envolver na música que está criar.

Albini era um produto meticuloso, não deixava erros crassos gravados em disco que comprometessem a qualidade das músicas e da banda. Não se tratava de desleixo ou incompetência. Os “acidentes” e o “caos” são ferramentas criativas que ajudam os artistas a focar-se no essencial, isto é, na energia e emoção da música, na alma das canções.

O teatro de improviso, devido à sua natureza espontânea e repentista, vive envolto em “acidentes” e “caos”. Os actores sobem a palco sem saberem o que irá acontecer. Deixar que o erro faça parte do processo é essencial para retirar o medo da equação. Quando deixamos de ter medo de errar, quando os “acidentes e o “caos” são matéria para a própria criação, então o improviso tem espaço para crescer.

À semelhança da gravação de uma música, com acordes, letra e progressão definidas, também o teatro de improviso tem estruturas lógicas subjacentes. É um “caos” controlado pelos actores. Os erros não surgem no vácuo e são moldados pelas mãos capazes e pela técnica dos improvisadores. Saber improvisar é saber utilizar o inesperado em nosso proveito; é ter as ferramentas necessárias para confrontar o desconhecido e dar-lhe significado. Improvisar é pavimentar o caminho que ainda não tem um destino conhecido.

É por isto que os improvisadores experientes têm facilidade em contracenar entre si, mesmo que não se conheçam, mesmo que tenham crescido em partes opostas do planeta. A linguagem comum da improvisação, permite-nos abraçar o desconhecido sem medo, com a segurança de que os “acidentes” e o “caos” que ocorram serão recebidos com entusiasmo.

I prefer to work on records that aspire to greater things, like originality, personality and enthusiasm.

Steve Albini

E isto leva-me à outra parte do parágrafo escrito pelo Steve Albini: “Prefiro trabalhar em álbuns que aspiram a coisas maiores, como originalidade, personalidade e entusiasmo”. Aqui, Albini demonstra como a sua filosofia coloca num plano superior os valores da originalidade da música, da personalidade única de cada artista e do entusiasmo com que se cria arte. Mais do que ter um produto polido, uma gravação meticulosamente trabalhada e afinada, Albini incentivava as bandas a serem imperfeitas na forma, mas interessantes no conteúdo.

Mais uma vez, é também assim que vejo a improvisação teatral. Numa peça de improviso é normal as histórias avançarem por lugares estranhos, por vezes ilógicos (e nós, humanos, precisamos muito que as coisas façam sentido imediatamente). O caminho de criação é sinuoso, porque é instantâneo, não experimentado e não testado. Mas isto só torna os momentos de sincronismo ainda mais preciosos.

Os momentos em que, no meio de uma história caótica, as personagens começam a revelar as ligações entre si;  em que os acontecimentos — aparentemente díspares — se tornam causas e efeitos uns dos outros; em que a centelha inicial  — a sugestão que deu origem à primeira cena — se transforma no tema transversal que moveu toda a peça… são momentos mágicos que não se encontram em mais nenhuma expressão artística.

As mensagens e a moralidade das cenas e das peças de improviso não são escolhidas antecipadamente, revelam-se à medida que as peças vão sendo interpretadas em palco. É um processo conjunto, de simbiose perfeita entre os improvisadores e a audiência. Artistas e público partilham a mesma descoberta “caótica”, original e inédita. Sempre.

Após mais de uma década a improvisar em palco e de centenas de espectáculos diferentes, ainda me surpreendo e entusiasmo com o que acontece numa peça criada em parceria com os meus parceiros improvisadores. Sei que será sempre assim no futuro, é parte inerente desta forma de arte.

Este entusiasmo, esta antecipação electrizante perante o desconhecido, só é possível se houver espaço para o erro, para os “acidentes” e para o “caos”. E não há nada mais punk rock do que saltar para um precipício sem saber o que nos espera lá em baixo.

 

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