BLOGRessonâncias

Considerações e deambulações sobre improviso

O jogo Portugal-Chéquia foi puro improviso

Junho 20, 2024

Desporto e improviso têm muitos pontos de contacto. Um golo da vitória no tempo de compensação de um jogo de futebol é como uma punchline perfeita; é o fim da cena. 

 

Utilizo muitas vezes o desporto como analogia para o trabalho que faço na improvisação teatral. O facto das peças de improviso não serem “ensaiadas” no sentido tradicional (não têm um guião de base ou encenação previamente definida) equipara-se ao treino que um atleta faz de preparação para as provas ou jogos que realiza. 

Existem muitas ligações entre improviso e o desporto. Por exemplo, a variante dos jogos de comédia de improviso é também apelidada de “teatro desporto” e existem espectáculos que são competições em que diferentes equipas tentam vencer os seus adversários (este ano participei no ImproEM ’24, na Alemanha, onde representei Portugal numa competição de improviso deste género).

Um improvisador prepara-se: treina o corpo, a mente e a dinâmica com o seu grupo; experimenta diferentes dramaturgias, personagens e escolhas em ensaio, para depois subir a palco para agir e reagir consoante o que o espectáculo precise. Não existem dois jogos de futebol iguais e não existem dois espectáculos de improviso iguais.

Esta semana, o primeiro jogo de Portugal no Campeonato Europeu de Futebol de 2024, na Alemanha, demonstrou como um jogo de futebol é um espectáculo muito próximo de uma peça de improviso. 

Aqui ficam 3 razões que fizeram o jogo Portugal-Chéquia parecer um espectáculo de improviso (no ponto de vista enviesado e absolutamente parcial de um português):

 

1 – Desfecho épico

O jogo Portugal-Chéquia terminou com uma vitória de Portugal com um golo no período de compensação. Aos 92’, Francisco Conceição marcou o golo que deu os 3 pontos a Portugal. Foi um final épico e uma catarse nacional.

Golo de Francisco Conceição aos 92′

Também no teatro de improviso podemos ter um desfecho com esta intensidade. Quando um improvisador diz a deixa certeira (com ou sem piada) e o público reage instintivamente, é possível obter a mesma descarga emocional de um golo.

Porque nunca sabemos para onde vai uma cena, é uma alegria imensa quando conseguimos “marcar um golo”, quando algo emocionante e relevante acontece em cena. À semelhança de um jogo de futebol, a felicidade de um desfecho em alta é sentida tanto pelo público como pelos improvisadores em palco.

Quando um actor entrega a punchline perfeita, principalmente após mais de um hora de acontecimentos sucessivos, não existe outra opção se não terminar a cena, fechar o espectáculo, fazer blackout e aguardar pelos aplausos efusivos do público. 

 

2 – Saber lidar com o inesperado e com a frustração

O jogo Portugal-Chéquia foi dominado pela selecção portuguesa: maior posse de bola (74%), maior número de cantos (13-0), de remates (19-5) e de remates à baliza (8-1). 

Porém, foi a Chéquia que marcou o primeiro golo, no único remate que fez à baliza e num dos poucos ataques durante todo o jogo. O momento em que Portugal sofreu o golo aos 62’, foi inesperado, injusto e emocionalmente devastador.

No improviso, temos de estar sempre preparados para o inesperado.

Os improvisadores têm de estar treinados para lidar com a desilusão de uma história que não vai para onde se esperaria; de uma personagem que se tornou algo diferente do que era previsto; de um acontecimento imprevisível que muda todo o espectáculo. 

A frustração pode ser a maior inimiga de um improvisador e de uma equipa de futebol. A selecção portuguesa reagiu ao golo sofrido e à incapacidade de conseguir marcar golos como um bom improvisador reage em palco perante a adversidade: com tranquilidade, noção de propósito e confiança. 

Perante a frustração, surge a tentação de se ser engraçado; de fazer acontecer algo exagerado e incoerente em cena; ou de forçar uma vontade egoísta, que em nada contribui para um bom desenvolvimento de um espectáculo de improviso. O medo do inesperado, da desilusão das expectativas e da perda de controlo torna-se, erradamente, o motor das nossas acções.

É por isso que os melhores espectáculos de improviso acontecem quando os improvisadores confiam em si próprios, nos colegas em palco e sabem que, apesar do inesperado poder gerar sentimentos negativos, é preciso continuar a improvisar de forma positiva, sem ego, com disponibilidade e vulnerabilidade. Assim, é muito provável que o “jogo” termine com uma vitória da equipa.

 

3 – Entrar sempre para ajudar

Francisco Conceição tem apenas 21 anos. Foi convocado para o Euro 2024 tendo feito apenas 2 jogos de preparação com a selecção portuguesa (um total de 135 minutos em campo). Foi apelidado pelo seleccionador nacional Roberto Martinez de “espalha-brasas”. É um jogador jovem, irascível, irreverente e que tem o potencial de mexer com os jogos em que entra. 

Começou o jogo com a Chéquia no banco e, com os tempo do cronómetro a terminar, parecia que não seria desta que iria chegar à sua 3ª internacionalização e acumular mais minutos em campo.

Aos 90’, com apenas 5 minutos de compensação por jogar, Portugal faz 3 substituições e Francisco Conceição foi a jogo. Dois minutos depois, na primeira vez que toca na bola, Francisco está dentro da área, um defesa checo não consegue cortar devidamente a bola passada por Pedro Neto (jogador que também entrou aos 90’), e, numa oportunidade inesperada, remata furiosamente para dentro da baliza da Chéquia. É golo. Com escassos minutos para terminar, a vitória está assegurada.

Foi um momento épico, uma reviravolta clássica em que o jovem herói entra em cena para salvar o dia.

Já vi muitos destes momentos acontecerem em palco e já fui protagonista de alguns. É apenas uma questão de tempo e oportunidade até estarmos no local certo, à hora certa para podermos tomar a escolha ideal e “salvar” uma cena ou um espectáculo. 

Muitas vezes, são os improvisadores que não assumiram um papel de protagonismo ao longo de um espectáculo que conseguem “marcar o golo de ouro”. Esta é outra das características que tornam o teatro de improviso tão generoso e democrático. 

Um actor pode não conseguir entrar recorrentemente ou assumir um papel de destaque durante uma peça inteira; mas na última cena, consegue entrar para encerrar o espectáculo e entregar a punchline ou a resolução perfeita da história. 

Isto só acontece porque quem está “de fora” se mantém activo, atento e disponível. Não estar em cena não significa não participar no espectáculo. O momento de contribuirmos para uma cena pode surgir a qualquer momento.

À semelhança dos suplentes num jogo de futebol, sempre que um improvisador entra em cena, deve entrar para ajudar: fazer avançar uma cena; apoiar os colegas nas escolhas que tomaram; contribuir com mais matéria para a história; ou clarificar para o público o que está a acontecer. 

Uma entrada pode não ter pouca relevância no decorrer de uma história, pode ser uma simples ilustração ou um apontamento engraçado; mas, por vezes, um improvisador entra para marcar o golo épico da vitória que ficará marcada na memória de todos. Como a entrada do Francisco Conceição.

 

PS: A empatia e´ uma capacidade imprescindível para se poder improvisar e não consigo deixar de pensar na equipa da Chéquia e nos adeptos Checos ao escrever este texto. Eles tiveram a experiência diametralmente oposta. Viveram o jogo em sufoco, tiveram um momento mágico com um grande golo e, quando parecia que iriam conseguir segurar 1 ponto contra uma das equipa mais fortes da competição, perderam tudo no último momento. O futebol, ao contrário do teatro de improviso, consegue ser muito cruel para metade do público que assiste e para metade dos intervenientes na acção.

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