Um auto-golo é um acontecimento cruel, frustrante e paradoxal num jogo de futebol. Com a lente do improviso podemos retirar lições importantes quando tudo corre mal (ou inesperadamente bem).
O Euro2024 continua a marcar este Verão. Num artigo anterior abordei 3 características do jogo Portugal-Chéquia que me fizeram lembrar um espectáculo de improviso.
Desta vez, depois da abundância de auto-golos que têm acontecido nos jogos, gostaria de falar sobre a importância da escuta activa, da comunicação entre colegas e da dificuldade de lidar com a frustração.
Apesar do erro ser matéria de criação e apropriação em palco quando estamos a improvisar, existem princípios essenciais que devem ser cumpridos para se poder improvisar eficazmente.
Numa grande competição desportiva como um Europeu ou um Mundial de futebol, onde a pressão sobre as equipas e sobre cada jogador é extremamente elevada, um erro — como um auto-golo — pode ser devastador, tanto desportivamente, como emocionalmente. A tristeza desoladora de quem coloca a bola na sua própria baliza contrasta com a felicidade inesperada da equipa adversária.
O Euro2024 já teve 10 auto-golos, um número muito perto do recorde de 11 estabelecido na edição de 2021.
Na realidade, a maioria dos auto-golos resulta do mérito da equipa atacante, mais do que do demérito dos jogadores que defendem. Os cruzamentos tensos e com força, a ausência de espaço na grande área e a grande velocidade das jogadas de ataque propiciam auto-golos quase inevitáveis. Estas são algumas das características do futebol moderno que têm levado a um aumento sucessivo das situações de desvios involuntários que resultam em auto-golos.
Porém, alguns auto-golos resultam de erros individuais ou colectivos das equipas. O auto-golo mais caricato deste Europeu aconteceu no jogo Portugal-Turquia, num atraso de Samet Akaydin para o guarda-redes que terminou dentro das redes turcas. É esta jogada que gostaria de analisar à luz da improvisação.

Para compreender o auto-golo turco e o seu equivalente num palco de teatro de improviso, vejamos esta cadeia de acontecimentos:
1 – Falhas na comunicação geram erros
O auto-golo da Turquia tem dois momentos evidentes de falha de comunicação entre jogadores.
Primeiro, na jogada de ataque de Portugal, João Cancelo faz um passe errado para uma desmarcação de Cristiano Ronaldo que não acontece. Ou Cancelo não tornou claro que iria passar, ou Ronaldo não tornou clara a opção de não correr para o espaço livre. Não comunicaram.
Segundo, o defesa turco Samet Akaydin recebe o passe perdido de Cancelo e atrasa para o seu guarda-redes, Altay Bayindir, sem ver que este está fora da baliza a correr em direcção à bola. Ou Bayindir não disse que ia sair da baliza, ou Akaydin não escutou. Não comunicaram.
Alguns jogadores conseguem antecipar instintivamente os movimentos dos seus colegas, principalmente quando jogam juntos na mesma equipa e têm rotinas estabelecidas. Numa selecção nacional, as rotinas assimiladas são mais raras e o tempo de preparação nem sempre permite criar uma ligação tão profunda entre jogadores. A comunicação eficaz entre colegas torna-se, neste contexto, de capital importância.
Assim se vê como a ausência de comunicação pode gerar dois erros graves: a anulação de uma jogada de ataque perigosa e um auto-golo desnecessário.
São inúmeras as situações em que podemos atribuir a origem de um erro a uma falha na comunicação entre duas pessoas.
Um processo de comunicação depende do encerramento do ciclo para ser eficaz. A mensagem do emissor tem de chegar ao receptor e este precisa enviar o feedback que atesta a recepção da informação.
Quando um actor entrega a sua deixa em palco, esta tem de ser clara para os colegas e para o público. Em improviso, cada fala e cada acção são novas frases de um guião que está a ser escrito no momento. De nada serve falar em palco se não nos fazemos ouvir correctamente. É por isso que os actores trabalham a dicção e a projecção de voz. São ferramentas imprescindíveis no nosso contexto e igualmente úteis para qualquer profissão que envolva trabalhar em equipa ou falar em público.
Preciso ainda de reforçar a importância do feedback. Muitas vezes escutamos os nossos colegas mas não damos a entender que recebemos a sua mensagem, não devolvemos feedback. Agimos e deixamos agir na base da confiança e da crença, abrindo espaço para que ocorram falhas na comunicação, como aconteceu entre Cancelo e Ronaldo.
No improviso, dependemos exclusivamente dos nossos parceiros de cena para fazer avançar as cenas. A escuta activa aliada à clareza e assertividade da comunicação são princípios fundamentais para se poder improvisar.
2 – Erros alimentam frustração
No momento em que João Cancelo faz o passe errado, Cristiano Ronaldo salta e gesticula furiosamente. A frustração é evidente em ambos os jogadores. Errar gera frustração, porque contraria as nossas expectativas. Errar desilude. Perante o erro, tanto Cancelo como Ronaldo desistem da bola e ficam bloqueados pelo sentimento de frustração.
No caso da defesa turca, é ainda mais compreensível a frustração manifestada por Akaydin, que enviou a bola para a sua baliza, e de Bayindir, que se afastou da baliza que estava a guardar e permitiu que a bola entrasse facilmente. Os dois jogadores discutem e ficam incrédulos com o erro que cometeram. Errar é incompreensível.

Ao longo da nossa vida cristalizamos a noção de que errar é mau, é vergonhoso, é sinal de incompetência e fraqueza. As consequências previsíveis dos erros são sempre negativas, logo, devemos evitar os erros a todo o custo. É um comportamento lógico.
“Errar é humano”, ouvimo-lo diariamente. Olhamos para a nossa experiência profissional ou académica (e pessoal) e encontramos muitos erros no nosso desempenho.
A quantidade elevada de auto-golos no Euro2024 — “erros gravíssimos” cometidos pela elite dos profissionais do futebol — demonstra como errar pode ser comum, mesmo a este nível de competência e capacidade.
Para anularmos a frustração que resulta do erro, primeiro precisamos normalizar a sua ocorrência. Saber lidar com o erro é saudável e torna-nos mais produtivos, porque não bloqueamos perante o seu aparecimento.
Não se trata de desvalorizar a importância ou a gravidade de um erro, mas sim de aceitar a sua existência e a sua potencial ocorrência. Se o erro é humano, temos de o aceitar como parte integrante das nossas vidas. Assim, conseguimos lidar com o erro de uma forma positiva e produtiva.
Em improviso, vamos mais longe. Para além de aceitarmos que o erro possa aparecer em palco, celebramos quando este acontece. Usamos o “não expectável” como uma oferenda e incorporamos o inesperado nas histórias e personagens que estamos a desenvolver no momento. Fazemos do caos uma fonte de material criativo. Recebemos o desconhecido sem desconfiança e somos mais produtivos por isso.
3 – Sucesso anula frustração
Por vezes, quando tudo parece estar a correr mal, afinal… correu tudo bem! É algo recorrente num espectáculo de improviso — que está repleto de acontecimentos incontroláveis — e foi o que aconteceu com a jogada de ataque da Selecção Portuguesa.
A frustração sentida pelo erro no passe de Cancelo para Ronaldo foi de tal forma intensa que os dois jogadores desligaram-se do jogo. Reclamaram um com o outro e cederam à emoção. Por pouco não perceberam no que estava a acontecer à sua frente: Akaydin não vê que o guarda-redes Bayindir está fora da baliza e faz um passe que termina num auto-golo.
A frustração dos jogadores de Portugal foi imediatamente anulada, dissipada e substituída por uma explosão de alegria.
O erro tão negativo cometido pelos jogadores portugueses foi, meros segundos mais tarde, o início da sequência de eventos que terminou num golo a favor de Portugal. Tudo isto esteve fora do controlo dos jogadores portugueses.

Porém, a reacção perante o erro deve estar sob o seu controlo. Esta sucessão de acontecimentos demonstra o quão inútil é deixar que a frustração nos domine quando estamos a desempenhar um papel, seja em palco, em campo, ou em qualquer outro cenário. Ficarmos bloqueados porque tomámos uma decisão incorrecta não tem qualquer funcionalidade prática positiva. É por isso que temos de saber lidar com o erro.
O erro gerou a oportunidade. A falha determinou o sucesso.
Em palco, temos de improvisar livres de frustração. Temos de estar focados no que está a acontecer e disponíveis para aceitar o que não controlamos. Incorporamos os nossos erros e apoiamos os dos outros. Nunca nos desligamos ou divorciamos da nossa envolvente.
O improviso mostra-nos que se retirarmos a frustração da equação que determina as nossas escolhas, todas as decisões estão destinadas a ser bem sucedidas; porque qualquer erro, em potência, poderá originar um “auto-golo da equipa adversária”. Só assim conseguimos improvisar / trabalhar / jogar livremente e com todas as nossas capacidades em prática.